Pastora ajuda mãe de santo a reconstruir barracão de candomblé

Marcelo Theobald / Agência O Globo
No dia em que a mãe de santo Conceição d'Lissá e a pastora Lusmarina Campos Garcia se conheceram, num gabinete da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, as duas se abraçaram longamente. Conceição chorava, depois de seu barracão de candomblé em Duque de Caxias, na Baixada, ter sido alvo de oito atentados, o último deles um incêndio que destruiu quase tudo. Lusmarina, da Igreja Luterana, tinha acabado de propor que as doações de evangélicos ajudassem a reconstruir a casa de santo. A demonstração de afeto e respeito mútuo marcou o primeiro encontro de duas mulheres que, por caminhos diferentes, rumaram para objetivos parecidos, de fé aliada à luta por direitos de minorias e ao combate a preconceitos.

Quase quatro anos depois daquele abraço, em 2014, o barracão Kwe Cejá Gbé está sendo reformado, com cerca de R$ 12 mil arrecadados por Lusmarina e religiosos como os da Igreja Cristã de Ipanema. A polícia nunca descobriu quem foram os autores dos ataques ao terreiro. Suspeita-se de que tenham sido grupos evangélicos. Nunca houve, porém, dúvidas de que foram ações criminosas motivadas pela intolerância religiosa, que apenas no ano passado resultaram em 87 denúncias à Secretaria estadual de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos, 71,5% delas contra religiões de matriz africana.

- Quando eu soube do incêndio na casa da Conceição e de ataques a outros terreiros, eu me perguntava o que fazer. O Evangelho não convoca para a guerra e violência. Mas, sim, para o amor, a misericórdia, a aproximação e o cuidado. Uma atitude de destruição tem uma carga de comunicação negativa tão forte que pensei: a única maneira de confrontar esse episódio de forma positiva é fazer a reconstrução - diz Lusmarina.

Àquela época, fazia dois anos que a pastora tinha retornado de Genebra, na Suíça, onde, desde 2003, estava à frente da Igreja Luterana local. A experiência na cidade que abriga organizações internacionais como a ONU só fortaleceu a ligação de Lusmarina com o movimento ecumênico, do qual ela já fazia parte desde os anos 1980. Além disso, diz ela, o ecumenismo é uma característica da própria confissão luterana, ao defender o respeito a outras religiões. De volta ao Rio, ela se tornou presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado, que abraçou sua ideia das doações ao terreiro de Conceição (até que uma nova diretoria assumisse e deixasse a proposta, por um tempo, em segundo plano).

- A formação ecumênica me deu subsídios, inclusive teológicos. Nossa sociedade é muito plural. Não podemos querer que a nossa verdade religiosa, política, ou a que for, seja a única. É muito importante reconhecermos isso. Se não, na situação de polarização que vivemos hoje, vamos estabelecer guerras e identificar inimigos em todo lugar, o que é muito cruel. A sociedade precisa ser arejada. E acho que uma das maneiras é exatamente a compreensão de que a diversidade existe e precisa ser apreciada como valor fundamental para a convivência humana - afirma Lusmarina.

MILITÂNCIA POLÍTICA ANTES DA RELIGIOSA

A busca de diálogo e a militância social sempre orientaram Conceição. Seu pai foi presidente e fundador do sindicato dos cozinheiros do Rio, o que fez com que ela convivesse com a política desde a infância. Ela conta que, aos 15 anos, já era uma "subversiva" nas passeatas contra a ditadura militar. Já a religião, Conceição descobriu na vizinhança, no Cachambi, bairro da Zona Norte onde morava. Primeiro, veio a umbanda e, depois, o candomblé, no qual, na última quinta-feira, completou 30 anos de iniciada. Ao se tornar mãe de santo, montou seu barracão em Imbariê, em Caxias. Era onde o dinheiro permitia comprar um terreno, duas décadas atrás:

- Quando vim para cá, não tinha nada. Nem luz, nem água nem saneamento. Até hoje vivemos assim. Na época, pessoas ligadas ao PCdoB ajudaram na formação de uma associação de moradores para pleitear melhorias. Foi quando me filiei ao partido e passei a militar em organizações como a União nos Negros pela Igualdade (Unegro) e a União Brasileira de Mulheres (UBM). Participei da construção do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, do qual me orgulho muito.
Mãe de santo Conceição dLissa pretende abrir a casa para oficinas e projetos sociais - Marcio Alves / Agência O Globo

A religiosidade, porém, andava em paralelo. A militância política e a luta contra a intolerância religiosa só se juntaram quando seu barracão sofreu os primeiros ataques, cerca de nove anos atrás.

- Comecei a usar minha militância para botar a boca no mundo. Pensei: 'vou usar tudo que tenho e conheço para falar muito alto. Se não, se me matarem na esquina, ninguém vai saber o motivo. Dizem que falo muito alto. Falo muito alto mesmo, e à beça. Mas preciso falar, porque assim vou me tornar menos invisível e não virar estatística - diz Conceição. - Preciso dizer que eu não sou o inimigo, a personificação do mal ou do diabo. Não sou exemplo de castidade e pureza. Mas não sou o monstrengo que querem pintar. Não sou, e ninguém das religiões de matriz africana é - desabafa a mãe de santo.

Os assuntos nos quais a mãe de santo se engajava eram também preocupações de Lusmarina. Falando de temas que se tornaram tabus em determinados segmentos evangélicos mais conservadores, ela enfrentou resistências. Os rótulos que ganhou são muitos, como "pastora dos gays, pretos e putas", como ouviu certa vez. Recentemente, foi, inclusive, xingada de "vadia" e "vagabunda" por um youtuber evangélico que criticava a doação ao terreiro de Conceição. A despeito de qualquer ataque, Lusmarina diz que não vai mudar:

- Na minha trajetória, sempre tentei conjugar a questão dos direitos humanos com a teologia. Defendo os grupos minoritários, os direitos de pessoas homossexuais, mulheres, crianças e outros grupos que são historicamente marginalizados tanto na sociedade quanto na igreja.

Foi com essa postura que, antes do pastorado, Lusmarina se formou em teologia e, logo em seguida, em direito, porque queria defender os "sem-terra, sem-teto e as minorias mais empobrecidas da sociedade". Hoje, ela é doutoranda da Escola Nacional de Direito da UFRJ, onde pesquisa a relação entre política e direito no Brasil a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Direito também é uma das formações de Conceição, psicóloga que agora tenta o mestrado em antropologia para estudar a vestimenta kpossu, um dos voduns ancestrais do candomblé.

As duas mulheres fazem questão de deixar claro que não são de abaixar a cabeça. Conceição ressalta que a doação para a reforma do barracão vai muito além do dinheiro. Para ela, o ato precisa ser visto, valorizado e sentido pelas pessoas como uma possibilidade real de outra atitude diante do que não se crê, não se conhece ou não se gosta. Quando a reconstrução do terreiro terminar, ela pretende retribuir dando uma resposta pacífica aos que a atacaram. Vai abrir a casa para oficinas e projetos sociais.

- Quero otimizar o espaço para a comunidade, embora eu saiba que ela resiste em vir aqui. O barracão, para mim, virou um quilombo. E quilombo é resistência. Sendo assim, a gente vai resistir. E não quero mais um quilombo fechado. Vai ser aberto. Porque desse jeito acho que a gente consegue passar outra mensagem - diz a mãe de santo.

FUNDO PERMITIRÁ MAIS AJUDA

Enquanto isso, o gesto de Lusmarina já rende frutos. Hoje, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs mantém ativo um fundo para receber mais doações, tanto para terminar as obras no barracão de Conceição, quanto para recuperar outros terreiros destruídos. Para a pastora, se o preconceito afasta a possibilidade de diálogo, dentro das igrejas há muita gente disposta ao debate, mesmo que às vezes haja relutância.

- É nesses espaços que eu circulo. Na verdade, acredito que existe sempre uma tensão que é criativa e boa, de confronto e compartilhamento de ideias diferentes, onde são criados diálogos - diz Lusmarina. - A própria tradição judaico-cristã é da organização do caos. Em Gênesis, antes de Deus ordenar as coisas, havia caos. Um outro mundo e outra humanidade são possíveis. Temos que construir elementos novos que carreguem em si o potencial do amor, da união e da unidade.

FONTE: Jornal O Globo em 29/04/2018

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