Ressurgimento de fundamentalismos religiosos


Por José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília


Martin Norberto Dreher, no seu livro Para entender o fundamentalismo (São Leopoldo: Unisinos, 2002) afirma que "todos somos fundamentalistas, pois todos necessitamos de fundamentais, de fundamentos, de alicerces para a nossa existência, e quem desistir deles estará desistindo de si mesmo” (p. 9). Porém, deixa claro o autor, o fundamentalismo, quando passa disso, pode se tornar uma graveameaça para a pessoa e para a humanidade. É o caso do fundamentalismo religioso que se caracteriza pelo fechamento de cada religião na própria autossuficiência dogmática, afirmando que vale apenas a sua verdade. Por esta razão os fundamentalistas se recusam a interagir com outras religiões, não admitindo a parcela de verdade presente nas crenças religiosas diferentes. Os fundamentalistas conferem caráter absoluto aos seus pontos de vista. Por isso não toleram outra verdade. Assim sendo, o destino do fundamentalismo é a intolerância, o acirramento entre grupos religiosos e a geração de ódio e de violência.

O fundamentalista religioso não coloca os alicerces de sua fé na experiência religiosa concreta da divindade, mas nos dogmas, entendidos como realidades fixas, imutáveis e livres de qualquer possível interpretação ou hermenêutica. Sabemos que os dogmas religiosos não nasceram por si mesmos, mas foram definidos pelos credos religiosos, a partir de uma interpretação dada a uma determinada verdade tida como revelada pela divindade. O fundamentalismo religioso não vê o dogma no contexto histórico da sua constituição e definição. Faz uma interpretação literal do seu conteúdo, recusando-se radicalmente a admitir interpretações diferentes. E o fundamentalista faz isso porque se sente ameaçado em sua fé fragilizada. Quando alguém ousa dar uma interpretação diferente do dogma, o fundamentalista entra em crise porque, em sua cabeça, a ordem previamente fixada se transforma de repente em desordem e ele não consegue entender mais nada.

Creio que seja possível identificar formas de fundamentalismos religiosos em todos os tempos e em todas as religiões que se consideram reveladas. Porém, segundo Dreher, o fundamentalismo religioso, enquanto movimento, é um fenômeno do Ocidente cristão e foi gestado no âmbito da Igreja Católica, como reação ao Iluminismo e ao Liberalismo. Mas também alguns grupos protestantes desenvolveram formas religiosas de fundamentalismos. Encontramos expressões de fundamentalismo religioso também entre os judeus e entre os mulçumanos.

Ultimamente o fundamentalismo religioso tem voltado com muita virulência. Entre nós ele tem uma face cristã, com suas nuances católicas e evangélicas. Segundo Boff, em seu livro sobre o fundamentalismo e a globalização (Rio de Janeiro: Sextante, 2002), o fundamentalismo de matriz cristã parte do pressuposto que a Bíblia deve ser lida ao pé da letra. Como livro inspirado ela não contém erro e, por isso, dizem os fundamentalistas, fazer uma interpretação que não seja literal se constitui numa ofensa a Deus. Os fundamentalistas não aceitam as regras mais elementares da hermenêutica bíblica, nem mesmo aquelas aprovadas pelas autoridades religiosas de suas igrejas. Embora publicamente admitam tais regras, na prática concreta agem como se elas não existissem. Para o fundamentalista há uma identificação materialentre a Palavra de Deus e a Bíblia, enquanto livro escrito.

Eles não admitem que a Bíblia contenha a Palavra de Deus, mas que a Bíblia do jeito como está escrita é a Palavra de Deus. Deste modo atribuem a inerrância a todas as informações contidas nos livros da Bíblia, inclusive naquilo que diz respeito aos dados históricos, geográficos, biológicos, cósmicos etc. Para eles não se deve levar em conta a história das tradições, da redação dos textos e das formas como estes foram escritos. Simplesmente há uma leitura fundamentalista de todos escritos bíblicos, que devem ser interpretados literalmente e sempre do mesmo jeito. Porém, tal modo de ler a Bíblia pode induzir ao erro. De fato, diz o Vaticano II na Dei Verbum (nn. 12-13), Deus falou "à maneira humana”. Por isso é indispensável que quem lê e interpreta a Sagrada Escritura procure investigar o que Deus quis realmente manifestar por meio das palavras dos hagiógrafos. Na interpretação dos textos divinos devem-se levar em conta os modos peculiares, ou seja, a diversidade e o sentido exato de cada um deles para se saber o que pretendem exprimir a partir de determinadas situações ou circunstâncias.

O risco do fundamentalismo religioso está no seu extremismo que pode levar os seres humanos a cometer verdadeiras loucuras. Com seu caráter guerreiro e missionário, o fundamentalismo religioso é intolerante, inflexível, sectarista, machista e preconceituoso. Com a pretensão de combater o "modernismo” acaba por maltratar pessoas e violar direitos fundamentais, hoje plenamente garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelas constituições dos países democráticos. O fundamentalista cristão, por exemplo, não reconhece que existem realidades verdadeiras e santas, bens espirituais e morais nas outras religiões, como afirmou o concílio Vaticano II por meio da declaração Nostra aetate (nº 2). Além disso, o fundamentalismo favorece o patriarcalismo, o autoritarismo, a discriminação e a infantilização dos fiéis. Com isso alimenta a cegueira racional e sacrifica vidas em nome de normas e doutrinas que, no fundo, foram criadas pelos homens e não por Deus. Aliás, Jesus, em seu tempo, já denunciou os fundamentalismos religiosos que deixam de lado os verdadeiros e autênticos mandamentos de Deus para dar mais importância e peso às tradições religiosas, criadas propositadamente para esvaziar a Palavra de Deus e sustentar a hipocrisia de certas lideranças (Mc 7,1-23).

Em pleno século XXI o perigo do fundamentalismo religioso não passou. A religião ainda pode ser causa de violências e de guerras. O princípio da liberdade religiosa e do respeito pelas diferentes formas de religiosidade ainda está longe de ser cumprido. Fatos recentes de intolerância religiosa, acontecidos inclusive no Brasil e registrados por entidades e portais eletrônicos que combatem tal prática, mostram que o fundamentalismo pode ainda causar enormes estragos à humanidade. Infelizmente existem católicos e evangélicos que ainda não se deram conta daquilo que afirmou magistralmente o Vaticano II na declaração Dignitatis humanae: "a liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, qual a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer” (nº 2). Por isso, quando se trata de matéria religiosa, nenhuma pessoa deve ser forçada a agir contra a própria consciência. Negar esse direito à pessoa humana é atentar contra a ordem estabelecida por Deus (nº 3).

Os estudos de Dreher também mostraram que há uma relação profunda entre fundamentalismo religioso e fundamentalismo político. Para os fundamentalistas religiosos a ação política deve ser sempre orientada pela verdade religiosa. A sociedade perfeita é aquela que se submete à verdade religiosa. A partir desse princípio justificam-se intervenções violentas nos Estados independentes e "guerras santas” contra "hereges”.

A história nos mostra que por trás de quase todas as guerras está também o fundamentalismo religioso. Não por acaso os grupos fundamentalistas mais radicais apoiam governos autoritários e ditatoriais, chegando ao cúmulo de negar crimes contra a humanidade, como aqueles cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Por sua vez os governos autoritários adoram religiões fundamentalistas, uma vez que elas favorecem a cegueira racional e a ausência de espírito crítico, contribuindo assim para a manutenção do status quo. Fica, pois, evidente o risco que corre a humanidade se tais fundamentalismos não forem identificados, desmascarados e completamente rejeitados.

[Co-autor de- Antropologia da Formação Inicial do Presbítero, por Edições Loyola].

FONTE: Adital em 11/06/2012

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