Número de casos de intolerância religiosa este ano já é maior do que em 2017







Entre 2013 e 2018, 135 ocorrências já foram registradas, segundo a Sepromi


A Bahia já tem 135 casos de intolerância religiosa entre 2013 e agosto deste ano, segundo a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Desse total, 29 aconteceram em 2018. O número já é maior que os 21 crimes registrados em todos os 12 meses do ano passado.

Desde 2013 - ano da criação do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, órgão ligado à Sepromi -, o ano em que mais houve registros foi em 2016, com 32 ocorrências.

O centro também registrou cinco casos de violação a terreiros de candomblé no estado este ano, sendo três na capital baiana. Para a coordenadora Nairobi Aguiar, o crescimento dos casos entre 2017 e 2018 se deve ao aumento da intolerância na sociedade e à maior procura pelo órgão, mas frisou que o número ainda é pequeno se comparado à realidade.


No domingo (26), o terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, em Juazeiro, no Vale do São Francisco, teve o telhado apedrejado. O local já funciona há 42 anos e, desde 2015, é alvo de intolerância.

“Existem muitas subnotificações que acontecem por falta de conhecimento das comunidades. Muita gente não registra as ocorrências porque não acredita nos órgãos da Justiça ou porque tem medo, e aqueles que procuram a delegacia, muitas vezes, registram o caso como invasão de patrimônio, não entendem que foram vítimas de intolerância religiosa”, disse.

Ela orienta quem for vítima desse tipo de crime a fazer o registro na delegacia e, depois que estiver com o boletim, procurar o Centro Nelson Mandela. O caso será encaminhado para a Defensoria e para o Ministério Público, além das vítimas receberem apoio psicológico. “Fizemos uma audiência pública em julho para discutir o caso de Juazeiro (alvo de agressões desde 2015) e acionamos os órgãos competentes, como polícia e Ministério Público. Faremos isso novamente”, disse.

A Sepromi tem uma rede de atendimento nos municípios, por isso, o contato deve ser feito através do (71) 3117-7448. O órgão vai orientar a vítima a procurar a unidade mais próxima.

Pedradas
Era para ser um dia de descanso para a ialorixá Adelaide Santos, 66 anos. Mãe do terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, em Juazeiro, ela levantou cedo, mas a Casa estava tranquila, porque não tinha nenhuma atividade prevista. A religiosa estava distraída quando foi surpreendida por uma chuva de pedras no telhado. As agressões começaram pela manhã e seguiram até a noite.

Segundo Ceres Santos, do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade (Compir) e membro da Rede Sertão do São Francisco de Combate ao Racismo Institucional, as ocorrências no terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, de Juazeiro, se intensificaram a partir de maio deste ano.

Em julho, foi realizada uma vigília contra a intolerância religiosa e, mesmo assim, pedras foram arremessadas. O caso foi denunciado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, em Brasília.

Em 2015, o local foi invadido durante a madrugada. Os vândalos arrombaram a porta e destruíram cadeiras, mesas e outros móveis. As telhas que cobriam o barracão foram quebradas, e quadros foram rasgados. As paredes do terreiro foram danificadas e marcadas com cruzes. O local existe há 42 anos e sempre esteve sob o comando de Mãe Adelaide. No local, mora, além da idosa, a filha dela e dois netos.

Por conta das ocorrências, uma câmera já tinha sido instalada nos fundos do terreiro. Até ontem, nenhum suspeito tinha sido identificado.

“Hoje, em pleno século XXI, precisamos lembrar que o caminho mais importante, independente de religião, é o respeito. Eu faço o candomblé, sim, mas eu tenho meus horários de trabalho marcados. Porque eu tenho meus vizinhos evangélicos e um respeita o outro. Isso vale também para as autoridades”, disse o pai de santo Amilton Costa, há mais de 30 anos à frente do terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, no Curuzu, em Salvador. O local foi invadido por policiais militares há pouco mais de um ano.

Amilton afirmou que o medo não deve ser alimentado: “Nós temos que mostrar a nossa força, ter os nossos direitos respeitados”.

Educação
Ekedy Sinha, do Terreiro de Casa Branca, na Avenida Vasco da Gama, compartilha da mesma opinião. Anfitriã da casa de santo, que foi apedrejada há cerca de cinco anos, afirmou que “o povo de santo não tem medo, tem fé”. Conforme Sinha, que tem 73 anos e nasceu no Casa Branca, a educação também tem um papel importante na reversão do preconceito e da intolerância.

Na avaliação do defensor público César Ulisses da Costa, da Defensoria Especializada de Direitos Humanos, o Brasil ainda precisa avançar muito na proteção e combate à intolerância religiosa. Segundo ele, faltam mecanismos eficazes para que esse tipo de situação não ocorra – ou, se ocorrer, que os responsáveis sejam punidos.

“A gente sabe que mudar uma cultura que vem desde a colonização, é muito difícil. As religiões que mais sofrem intolerância são as que já sofriam no passado, as que tinham seus cultos proibidos e suas populações religiosas perseguidas pelo estado”, disse.

Enquanto isso, Mãe Adelaide, de Juazeiro, luta para manter o terreiro aberto. Ela será recebida hoje pela Coordenadoria de Polícia do Interior (Coorpin) e por representantes do município, na Casa dos Conselhos, para discutir estratégias e tentar solucionar o problema.

Sanções
As violações em terreiros de candomblé devem ser entendidas como uma discriminação ou preconceito religioso. É o que está previsto na lei 9.459, de 1997, que trata justamente dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. É diferente da injúria religiosa, por exemplo, prevista no artigo 140 do Código Penal.

“O fato aí (o mais recente, em Juazeiro) é mais grave, porque está demonstrando uma forma de impedimento ao funcionamento da religião, ao culto religioso e à própria convivência das pessoas da religião, como a mãe de santo e as outras pessoas que habitam o terreiro”, diz o defensor público César Ulisses da Costa, da Defensoria Especializada de Direitos Humanos.

Esse tipo de discriminação vai contra a própria Constituição Federal, que permite a existência de todas as religiões. O defensor público explica que, quando esses ataques acontecem, o preceito constitucional da liberdade de culto é ferido.

Ainda de acordo com o defensor, quem pratica intolerância religiosa está sujeito a sanções penais e sanções cíveis. A responsabilização penal fica a cargo do Ministério Público, mas é preciso que o terreiro faça uma representação criminal. A pena varia de um a três anos de detenção, além de multa. Já no caso cível, cabem ações indenizatórias. A Defensoria atua nessa área por dano moral.

Em 2008, o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Federal da Bahia (Ufba) publicou o Mapeamento dos Terreiros de Salvador, em parceria com a Secretaria Municipal da Reparação (Semur). De acordo com o professor da Ufba Jocélio Teles, que coordenou o estudo, o mapeamento identificou que 8,6% do conjunto de terreiros na capital (na época, 1.164) vivia alguma situação de conflito.

Esses conflitos, geralmente, eram relacionados a igrejas evangélicas – em especial, as neopentencostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, ou as tradicionais, como Testemunhas de Jeová e Assembleia de Deus. Ainda segundo o professor, esse tipo de conflito tem sido crescente, a partir da década de 1990, e tem se tornado comum em todo o Brasil – mesmo com a presença de instituições como o Ministério Público do Estado e entidades do movimento negro.

“O que está acontecendo no interior provavelmente é em razão de não ter uma espécie de cinturão público para que isso seja contido, porque, onde há presença maior de movimentos políticos e defensorias públicas, isso tende a ser contido. Não é que desapareça, mas é um pouco menor. Não é tão visível, mas, mesmo assim, (é uma situação que) se espalha pelo país”, afirmou.

FONTE: Jornal Correio 24 horas em 29/08/2018

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