Incêndio criminoso destrói casa sagrada do povo Pankará
Lideranças indígenas do povo registraram a ocorrência na sede da Polícia Federal de Salgueiro, cidade vizinha à Terra Indígena Pankará da Serra do Arapuá. “Nossos rituais já vinham sendo atacados por pessoas familiares de quem já atacava nosso povo desde os antigos Pankará e que ainda estão dentro do território da gente”, explica a cacique Dorinha Pankará, que há alguns anos convive com ameaças.
O fogo queimou maracás, indumentárias, cachimbos e peças tradicionais do vasto acervo arqueológico do povo usadas nos rituais. “Acreditamos que o ataque envolve nossa demanda territorial. São famílias não-indígenas que não aceitam a demarcação e que nunca aceitaram que a gente é índio Pankará. Os velhos dessas famílias, antigamente, impediam nossos rituais”, diz a cacique.
Para os Pankará o incêndio guarda relação com os últimos ataques sofridos pelo povo; durante os rituais tradicionais, se tornou comum a ação de não-indígenas com pedradas nos pajés e a utilização de sons automotivos em alto volume para atrapalhar as práticas. “Dizem que é feitiçaria. Pra gente a história está se repetindo: querem nos impedir de ser o que somos”, afirma Dorinha.
Conforme as lideranças vêm defendendo nas reuniões internas do povo, apenas a demarcação da terra pode cessar tais ataques e as ameaças de morte sofridas pela cacique Dorinha. “Pedimos para o governo federal publicar o relatório circunstanciado da terra e fechar a demarcação. Hoje eu não posso andar com segurança pelo território e sair pra cidade. Os pajés estão sendo perseguidos. Nosso povo pede providências”, clama a cacique.
Venda de terras tradicionais
Como o relatório circunstanciado da Terra Indígena Pankará da Serra do Arapuá não foi publicado, travando a demarcação do território, os ocupantes não-indígenas passaram a ameaçar os indígenas dizendo que as famílias compram as terras que ocupam ou serão expulsas à força. “Então estão obrigando os Pankará a comprar terras que lhes pertencem. Famílias indígenas que nunca saíram da sua terra, mesmo na época em eram proibidos de se dizerem Pankará ou fazer os rituais, estão comprando as terras para que não sofram violências”, explica Dorinha.
São mais de 70 ocupantes não-indígenas no interior da Terra Indígena Pankará, prevista com 15 mil hectares pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Pankará da Serra do Arapuá (Portaria nº 413, de 24/03/2010) – entregue à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo Grupo de Trabalho em dezembro de 2014. Não é a primeira vez, entretanto, que as elites agrária e política atacam os Pankará, além das ameaças de morte sofridas sistematicamente pela cacique Dorinha.
No dia 17 de fevereiro de 2014, um projeto de mudança do nome da Unidade de Saúde Indígena Velho Anjucá, de responsabilidade do Ministério da Saúde, que atende ao povo Pankará da Serra do Arapuá, foi posto em votação pelo então presidente da Câmara de Vereadores de Carnaubeira da Penha, Jotanilton Cícero Bezerra (PSC), e aprovado por cinco votos a favor e quatro contra. Pela decisão dos vereadores municipais, a unidade de saúde Federal passaria a se chamar Nossa Senhora da Conceição.
“Percebemos que a tentativa é de atacar a nossa tradicionalidade, o que compõe o povo Pankará. Nunca aceitaram a nossa existência, mas os tempos mudaram e agora podemos nos dizer Pankará, temos direito à terra e de viver conforme nossas tradições, com nossa organização política própria. Nunca aceitaram isso. O tempo parece que não passou pra essas elites”, conclui a cacique Dorinha Pankará.
Resistência das gerações Pankará
O recente episódio envolvendo a violência contra o povo Pankará possui um desencadear histórico de subjugação dos povos indígenas no Sertão. O século XIX passou a ter uma documentação mais farta sobre a violência praticada contra os indígenas habitantes nas serras do Umã (povo Atikum) e Arapuá (povo Pankará). Período de crescente povoamento e da criação da Lei de Terras (Lei nº 601 de 18/09/1850), que legaliza o esbulho dos territórios indígenas para garantir a propriedade imobiliária. As terras do município de Floresta foram registradas, pela primeira vez, em 1858.
De acordo com mais de dez anos de pesquisa junto ao povo Pankará, a antropóloga Caroline Farias Mendonça Leal, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), afirma que em janeiro de 1866 Manoel Ferraz de Souza requereu uma área chamada Sítio da Penha – os Ferraz até hoje representam uma família poderosa no contexto de Carnaubeira da Penha. O delegado de polícia de Floresta escreve ao chefe de polícia de Pernambuco solicitando mais policiais para a Vila e a criação de três distritos – Vila, Caissara e Penha – para facilitar a captura dos indígenas resistentes. Penha viria a se emancipar como Carnaubeira da Penha.
Ao descrever a proposta de limites de cada distrito, ainda conforme a pesquisa da antropóloga, o delegado informou acerca do Sítio da Penha: “o da Penha onde existe uma pequena Capela cabeça de uma aldeia de índios que não existem”. Quanto aos subdelegados indicados para cada distrito, destacam-se novamente, para ocupar esse cargo público de autoridade policial, membros das famílias Ferraz, Gomes de Sá, Menezes – cujos descendentes até os dias atuais são envolvidos com as polícias locais.
Entre os anos de 1949 e 1958, sucessivas correspondências de lideranças Pankará e Atikum-Umã pleiteando o direito de posse das terras situadas na Serra Umã e Arapuá à 4ª Inspetoria Regional (IR4) e ao Conselho Diretor do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Além de telegramas e ofícios, consta o Relatório de Viagem do antropólogo da Universidade de Berkeley Hohenthal Jr, produzido no ano de 1952 para o SPI, que dá grande ênfase às violências cometidas contra os índios, inclusive tendo-as presenciado (MI/SEDOC - Inspetorias Regionais, IR 4 Nordeste. Microfilme 152, fotogramas 1068-1069. RELATÓRIO, Recife, 21 jun. 1946).
O azedume dos fazendeiros e políticos da região com os indígenas doi constatado in loco por Hohenthal Jr.: “Nessa zona do interior do Nordeste, pelos menos, parece que não há justiça brasileira para os pobres; essa é um privilégio só para os ricos e granfinos. O que me desgosta é o seguinte: estes Neo-brasileiros que dizem ser “donos” das terras disputadas, permitem os índios fazer todo o trabalho inicial de lavrar e melhorar um sitio. Construindo casas, plantando arvores frutíferas, etc.; e depois, quando o sitio esta em boas condições o negam perante o índio, e dizem: ‘Agora, é nosso! Saia dahi, ou lhe matamos!’ E o índio sai, para começar de novo o seu trabalho penoso e triste” (MI/SEDOC - Inspetorias Regionais, IR 4 Nordeste. Microfilme 379, fotogramas 814-817. RELATÓRIO, California, 14 jul. 1952).
Para a antropóloga e professora da Unilab, esse período hostil e de violência é muito presente na memória dos mais velhos. São inúmeros os relatos sobre as proibições da prática do ritual, as “noites de fuga” para dançar o Toré escondido “dos brancos”, a violência física contra algumas lideranças. Entre as várias violências, há dois episódios que marcaram muito a memória dos Pankará: a proibição de acessar água e a queima da casa de Luiz Limeira. Os filhos de Luiz Limeira relataram, com muito constrangimento, o episódio em que os invasores da terra indígena os proibiram de ter acesso à água e seu pai viajou ao Recife em busca de solução junto ao SPI.
“Os Limeira num bebem água nem no Gonçalo, nem em canto nenhum em cima da serra. Se quiser é no rio, vá beber água no rio São Francisco! Aí pronto, nós voltamos debaixo de patada, aí apareceram os parentes da minha mãe, e nós bebíamos água lá da aldeia Ladeira. Também o finado Filomeno disse: olhe, venham beber aqui na Taperinha. Só quem deu água foram os parentes de minha mãe e Cirano Menês. Quando pai foi para Recife, para resolver esse negócio dessa proibição, nós ficamos bebendo água só da Ladeira e da Taperinha. Foi quando pai chegou em Recife e contou a historia: “eu moro lá na Cacaria e estamos proibidos de beber água nos caldeirão, tinha uns caldeirão cheio d’água lá. Caldeirão de Roque, de Augusto, tudo cheio d’água, mas o branco empatou da gente beber água”. Lembro também que tinha um pé de água que meu pai fez e os brancos mandaram quebrar o pé de água pra escorrer a água pra gente não beber”, relatou Manoel Limeira para a dissertação de mestrado da antropóloga.
Luiz Limeira acabou banido da Serra do Arapuá e morreu no sertão da Bahia. Luiz Limeira é o avô da cacique Dorinha. Na década de 1970, descendentes de outras famílias Pankará se deslocaram para a Serra Umã, e outras famílias permaneceram na Serra do Arapuá sob a condição de rendeiros, meeiros e, em período mais recente, de pequenos proprietários de alguns lotes de terra, como é o caso dos Limeira, Caxiado e Rosa. Os Pankará deslocavam-se com frequência aos terreiros de Toré na Serra Umã, para junto com os Atikum “fazer a brincadeira” que só apenas em tais terreiros era permitido. Hoje são algumas das dezenas de histórias contadas pelos mais velhos e documentos oficiais.
O pajé Pedro Limeira, filho de Luiz Limeira e pai da cacique Dorinha, afirmou, durante mobilização dos povos indígenas no Palácio do Planalto, em Brasília (2013), que “os Pankará saíram de trás da pedra e pra lá não voltam mais não”.
FONTE: Assessoria de Comunicação - Cimi
Foto: Povo Pankará (divulgação)
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