Religiosos pedem a criação de delegacia para crimes com motivação religiosa

Por Clarissa Monteagudo

A pedra que atingiu a menina Kailane Campos, de 11 anos, na última semana, na Vila da Penha, é uma das faces de um crime que acontece todos os dias, muitas vezes de forma silenciosa: a intolerância religiosa. Aos 8 anos, Leandra Gabrielly também já foi vítima do preconceito. Ano passado, no colégio, um colega arrebentou o terço que a menina usava. Disse que pertencia “ao diabo”. Alarmada, a mãe da criança, a cabeleireira Daniele Porto, conta que foi à escola cobrar providências sobre o caso.

— A professora de ensino bíblico puxou o cordão que eu usava, dado por um cigano, e disse que eu pertencia ao diabo. Que eu não era de Deus. Fiquei em depressão, minha filha sofreu muito. A mãe do menino dizia que eu era satânica. Ela (Leandra) ficava sentada na última carteira, isolada dos outros alunos — conta Daniele, umbandista.


Daniele diz que está em depressão depois que a filha, Leandra, sofreu bullying na escola Foto: Roberto Moreyra



Quem sofre com atos de intolerância esbarra na falta de empenho do estado para punir os crimes. Comerciante e presidente do Movimento Umbanda do Amanhã, Marco Xavier já fez 40 registros de ocorrência contra vizinhos do seu terreiro, em Santíssimo. A última agressão foi gravada em vídeo: o grupo passa e destrói as oferendas e velas.

— Desde 2009, já quebraram vidros a pedradas, arrancaram luminárias, na hora da sessão, eles botam caixas de som na janela e som de exorcismo a todo volume. A polícia e o Ministério Público não fazem nada — reclama Marco Xavier.

Para o interlocutor da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa, Ivanir dos Santos, a solução para o caso seria a criação de uma delegacia especializada em crimes de racismo e intolerância religiosa.

— Os dois crimes são interligados. A polícia tem que identificar os líderes religiosos que movem esses agressores. Não é para fomentar o ódio. Mas as lideranças têm que ser responsabilizadas por esses discursos. Eles satanizam em suas doutrinas — defende Ivanir.

Para ele, a sociedade passou a enxergar e exigir a punição para crimes de intolerância religiosa:

— Isso sempre aconteceu, mas passava despercebido. Hoje, os casos detonam clamor na opinião pública.

Casos sem punição

Mais de 40 casos de intolerância religiosa foram acompanhados por pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (Ineac), da Universidade Federal Fluminense. A conclusão é frustrante para os religiosos: nem a polícia nem o Judiciário ainda “enxergam” os atos de intolerância como um crime que atinge a identidade das religiões de matriz africana.

— Na lógica policial, o conflito deve ser resolvido entre as pessoas. São tipificados como casos de menor potencial ofensivo, como insultos, e vão para os juizados. Quando não são “bicados”, o que acontece quando o policial convence a vítima a não registrar porque “nada vai acontecer”, são vistos como conflitos privados. São chamados de casos “de feijoada” ou “fubazada”, que remetem à cozinha — explica a pesquisadora Roberta Boniolo.

A Comissão de Combate à Intolerância defende que os crimes de intolerância religiosa sejam enquadrados na Lei Caó, que prevê de dois a cinco anos de prisão.

— De fato, os operadores de Direito acham que é “briga de vizinho”. Assim como a violência contra a mulher, que eles acreditam ter que ser resolvida na esfera doméstica. Enquanto as vítimas querem retratação quanto à sua identidade religiosa — explica o pesquisador do Ineac, Victor Torres de Mello Rangel.

Manifestação acontece hoje

Hoje, às 10h, no Largo do Bicão, milhares de religiosos vão fazer um protesto em desagravo contra a agressão sofrida por Kailane. Durante a semana, o prefeito Eduardo Paes, e o arcebispo do Rio, Dom Orani João Tempesta, se reuniram com a criança e seus familiares para prestar solidariedade.

Vários atos de vandalismo essa semana despertaram a opinião pública para uma onda de violência religiosa. Em Uberaba, o túmulo do médium Chico Xavier foi atingido por vândalos. Na Lagoa, o dirigente do templo Casa do Mago, Ubirajara Pinheiro, denunciou que três homens com Bíblias nas mãos apedrejaram o local, quinta-feira. Uma estrela, uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida e estátuas de Buda teriam sido atingidas, mas nenhuma foi danificada.

— Também existem casos de terreiros depredados, mas os dirigentes não querem registrar de jeito nenhum. Têm medo por causa do tráfico — conta Ivanir dos Santos, que conta com o apoio de lideranças evangélicas na manifestação contra a intolerância.

Kailane foi agredida por dois homens. O caso foi registrado na 38ª DP (Irajá).

Relembre casos

Na Bahia - Mãe Dede de Iansã, Mildreles Dias Ferreira, de 90 anos, faleceu na madrugada do dia 1º, após sofrer um infarto fulminante que teria como principal causa a perseguição sofrida ao longo de um ano, desde que uma igreja evangélica se instalou em frente ao terreiro Oyá Denã, na Bahia. Militantes contra a intolerância de todo o Brasil se uniram em manifestações em solidariedade.

Depredação - O centro de umbanda A caminho da paz, na Rua Manoel Alves, no Cachambi, foi invadido e depredado em fevereiro deste ano.

Agressão - Em 2009, a Faetec emitiu nota pedindo desculpas ao aluno Felipe Pereira, então com 13 anos, por ter sido chamado de “filho do capeta” por uma professora.

Invasão - Em junho de 2008, a depredação do Centro Espírita Cruz de Oxalá, no Catete, gerou revolta e mobilização entre segmentos religiosos.


FONTE: Jornal Extra em 21/06/2015

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