Do ‘Quebra de Xangô’ a 2012: religiosos denunciam forte intolerância no Estado

Perseguições, invasões e até homicídio ainda acontecem em Alagoas

1912. Pais, mães e filhos de santos foram gravemente agredidos física e moralmente: tiveram seus terreiros invadidos, queimados e depredados; foram espancados, dentro de suas casas ou nas ruas; fugiram, esconderam-se, temeram a morte. O episódio que hoje é chamado em todo o país como o ‘Quebra de Xangô’ aconteceu também em Alagoas, tendo como plano de fundo a tentativa de destituir do poder o então governador Euclides Malta, extremamente próximo das religiões de matriz africana.

2012 chega, por fim. Entretanto, a intolerância religiosa não dissipou completamente e ainda incide no Estado, seja com violência escancarada, seja com medidas administrativas questionáveis. Foi em 2012, por exemplo, que o babalorixá Rosivan Lins, de 31 anos, descia do carro para retirar sua filha de três anos da cadeirinha, quando foi assassinado com 12 tiros. 

“Esse caso é o que sabemos ter sido motivado por intolerância religiosa. Por coincidência, no dia em que houve o assassinato, outro babalorixá e sua esposa foram agredidos, no condomínio deles, tendo também como motivo a intolerância religiosa”, relatou Mônica Carvalho, representante da comunidade Ilé Axé Legioniré Xoroqué. 

“Somos a parcela da religiosidade brasileira que mais sofre preconceito. Ela está no nordeste inteiro. Pernambuco teve casas invadidas e depredadas. Em Maranhão, as casas de axé foram incendiadas; em Salvador também. É uma luta que se estende por território nacional”, atenta.

Os casos de violência são tão presentes em Alagoas que, de acordo com o advogado Alberto Jorge Ferreira, a perseguição contra as manifestações religiosas são as denúncias mais constantes que chegam à Comissão de Defesa das Minorias Étnicas e Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil, setor presidido pelo advogado. 

“Era tão frequente a invasão de militares em casas de axé e terreiros, que chegamos a reunir os coronéis, comandantes militares, e firmar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público, para garantir que os policiais deixassem de perseguir os religiosos”, relata. 

A Polêmica da Festa das Águas

Como não bastassem os enfrentamentos lidados no dia a dia, o povo que compõe a Rede de Comunidade Tradicional de Povos de Matriz Africana terminou surpreendido, no 8 de dezembro do ano passado, por mais um impedimento considerado pelos pais e filhos de santos como um caso de discriminação religiosa. 

Sob a égide de argumentos como ‘organização’, a Prefeitura de Maceió, por meio da Superintendência Municipal de Controle e Convívio Urbano (SMCCU), decidiu limitar o horário da tradicional Festa de Nossa Senhora da Conceição. Os religiosos poderiam ir à praia e cultuar Iemanjá, mas só das sete às dezessete, regulou o órgão. Depois disso, a praia seria destinada a um show gospel denominado ‘Maceió de Joelhos’, organizado por um grupo protestante. 

Este ano, os grupos de religiões afro-descendentes decidiram adotar a precaução de buscar na Justiça o direito de cultuarem o 8 de dezembro, sem limitações de horários. “O que a gente se pergunta é o seguinte: se temos uma lei especifica para tratar da questão da intolerância religiosa, de reconhecimento da nossa luta e resistência, por que temos que ir à rua para brigar mais uma vez pelos nossos direitos?”, questionou Carvalho. 

Limitação

Embora a Superintendência não tenha chegado a delimitar horários, o evento ‘Maceió de Joelhos’ foi novamente programado para o mesmo dia da festa de Iemanjá. Reunidos no Fórum do Barro Duro, e contando com apoio de entidades públicas, e até mesmo representantes de outras religiões, a comunidade conseguiu, por fim, ter o direito garantido. 

“A SMCCU vai nos entregar um documento deixando o local permitido por 24 horas. Já o ‘Maceió de Joelhos’ vai acontecer no Benedito Bentes”, comemorou o Pai Célio, da Casa de Iemanjá. “A Prefeitura, na pessoa do senhor do Galvacy, entendeu nossas reivindicações”. 

Segundo Carvalho, a liberação de 24 horas não significa, no entanto, que a população será incomodada. “Queremos até tranquilizar os moradores no que se refere a essa liberação. Não vamos fazer barulho nem batuques de madrugada. O que quisemos garantir foi que cada casa de axé pudesse realizar seu ritual de acordo com seus horários, respeitando a particularidade de cada grupo”, explica. 

Mais do que um ‘evento’, a Festa das Águas é o dia em que as casas de axé praticam a religiosidade. “Quando você tem um evento como o ‘Maceió de Joelhos’, você está tratando de um show. Mas em 8 de dezembro, festa de Nossa Senhora da Conceição, as casas vão às praias para ritualizar, da mesma forma que ritualizam em seus templos. É uma manifestação de fé, gratidão e oração a Iemanjá”, comenta. 

“Claro que os Maracatus e Afroxés também estarão presentes, porque fazem parte da comunidade enquanto matriz cultural. Alguns são ligados diretamente às casas religiosas, outros defendem a matriz e os consideramos também como nossa comunidade”, acrescenta. 

Entretanto, na última sexta-feira (07), o advogado Alberto Jorge, afirmou que a autorização concedida pela prefeitura, em nome do superintendente municipal de controle do convívio urbano, Galvacy de Assis, representava uma ofensa ao evento, por ser uma concessão condicionada, colocando todo dano que houver no evento em ordem de pessoa física. “Isto mostra que o senhor Galvacy não conhece a lei. É um caso de intolerância religiosa, onde a Polícia deveria fazer a patrulha do evento sem restrições.”

Representante da igreja defende diversidade

Embora os episódios de intolerância tentem constranger as manifestações de religiosidade afro, exemplos positivos puderam ser visualizados até mesmo no ato ocorrido no Fórum do Barro Duro, dia 3 deste mês. Representando a Pastoral Negra da Igreja Batista do Pinheiro, o evangélico Benedito Jorge esteve presente no manifesto. 

“Embora eu seja de religião evangélica, e minha religião tenha todo esse histórico de intolerância religiosa, o que propomos é que seja feita uma releitura da bíblia, de modo que deixem de discriminar as pessoas pela sexualidade ou pela religiosidade”, comentou. “Não só a diversidade religiosa é positiva, como precisamos resgatar a mensagem cristã, superando a discriminação para chegar ao pai”, acrescenta. 

Benedito Jorge também disse apoiar a Festa das Águas, não apenas em favor da livre manifestação religiosa, como também cultural. “É preciso lembrar que, além de ser o culto dos integrantes de religiões de matriz africana, também é uma festa tradicional, que já faz parte da cultura em nosso estado”, reforça.


FONTE: Gazeta Web em 08/12/2012

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