Violência em nome de Deus


Ataques contra religiosos crescem em proporção jamais vista no Brasil. Praticantes de cultos afro são os maiores alvos de evangélicos, mas há registros de agressões também a judeus e muçulmanos


A perseguição religiosa é uma das faces sombrias do Brasil atual. Ela se manifesta diariamente contra praticantes do candomblé e outros credos de matriz africana. Na terça-feira 2, a professora do ensino médio Odara Dèlé Almeida e Oliveira se deparou com uma suástica pichada no portão da Escola Estadual Conselheiro Rui Barbosa, em São Paulo. Os termos mais leves a qualificavam de “preta” e “galinha”. No dia anterior, ela havia sido hostilizada por um aluno. O motivo: as roupas brancas que trajava. Adepta do candomblé, Odara tentou abrir um boletim de ocorrência, sem sucesso. Dois dias antes, Arlindinho Cruz, filho do sambista Arlindo Cruz, ex-Fundo de Quintal, sofreu ataques ao postar uma foto no Instagram ao lado de uma imagem de Iemanjá. Um intolerante escreveu: “(…) por isso que teu pai está nesse estado rapaz (…)”, numa referência aos problemas de saúde que o sambista enfrenta. Arlindinho acionará a Justiça. Na noite de 26 de setembro, na cidade mineira de Iturama, a PM interrompeu uma cerimônia e aprendeu os atabaques. O babalorixá Diego de Logun Edé foi fichado por perturbação do sossego. Na segunda 2, o caso foi arquivado e os instrumentos, devolvidos. Os defensores de Diego de Logun comprovaram que a lei do silêncio não havia sido violada e que a PM agiu ilegalmente ao interromper um culto em andamento e confiscar itens litúrgicos. Os policiais devem ser denunciados à corregedoria, afirmou o advogado Hédio Silva Jr.

Valter Campanato/Agência Brasil


O registro de casos de intolerância e ódio religioso aumenta sem parar desde 2011, quando a Secretaria de Direitos Humanos, hoje ministério, começou a compilar dados. De 15 casos naquele ano, houve um salto para 759 registros em 2016 — os resultados de 2017 ainda não estão fechados. São Paulo e Rio de Janeiro acumulam 105 e 79 ocorrências, respectivamente. Das denúncias identificadas, 63% das vítimas são do candomblé, umbanda e credos de matriz africana. Os evangélicos aparecem em apenas 4%. “Aqui, a intolerância religiosa está fortemente relacionada com raça”, diz a pesquisadora Magali Cunha. Para ela, como o cristianismo veio como elemento civilizatório europeu, as crenças de indígenas e escravos acabaram desqualificadas por serem tidas como inferiores. Tanto que os terreiros foram proibidos até os anos 1950, mesmo em uma república dita laica desde 1890.

O que surpreende com alívio é que não há assassinatos. Mas no Rio faltou pouco. Depois que seu terreiro em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, foi atacado por traficantes de orientação evangélica, em 13 de setembro do ano passado, a mãe de santo Carmen Flores, a Mãe Carmem de Oxum, fugiu para a Suíça. Para não morrer, ela teve que destruir ícones de seu santuário. Os traficantes divulgaram até vídeo. “O capeta-chefe tá aqui. Taca fogo em tudo, quebra tudo, o sangue de Jesus tem poder”, diziam. Em Seropédica, o carro de um sacerdote afro foi alvejado 22 vezes. A investigação segue sob sigilo, mas as suspeitas são de ódio religioso. Ocorrida em junho de 2015, a agressão à menina Kaylane repercutiu. Então com 11 anos, ela saía de um culto com a avó, na Vila da Penha, quando foi atingida na cabeça por uma pedra lançada por evangélicos. Hoje com 15 anos, Kaylane ainda se revolta: “Não quero que me tolerem. Quero que me respeitem”.

Interpretações fundamentalistas do Velho Testamento por pastores neopentecostais só fazem piorar as coisas. Em 2011, o deputado federal (PSC-SP, hoje no PODE) e pastor Marco Feliciano postou no Twitter uma série de comentários atacando negros e as culturas africanas: “A maldição que Noé lança sobre seu neto, Canaã, respinga sobre o continente africano, daí a fome, pestes, doenças, guerras étnicas!”. Depois, disse que foi vítima de linchamento.

“O Brasil vive o mito da tolerância”, diz Márcio de Jagun, presidente do Conselho de Defesa da Promoção da Liberdade Religiosa do Rio. Ele lembra que o protagonismo da perseguição foi no passado da igreja católica, estando hoje com os evangélicos. “Eles fazem proselitismo negativo, desqualificando o povo negro”, diz Jagun. “Toda a religiosidade que enfatiza o combate a um inimigo espiritual gera extremismo e violência. Não à toa a Bancada da Bíblia anda junto com a Bancada da Bala no Congresso”, diz Magali Cunha.

O desrespeito também atinge muçulmanos, que somam pelo menos 800 mil fieis no País. Para Ali Zogbi, da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), nos países cristãos há dificuldade para entender as complexidades do Oriente Médio. “Mulheres em trajes típicos são chamadas de terroristas em ônibus e mercados”, diz. Todavia, Zogbi admite que há poucas denúncias.

Em São Paulo, a Justiça teve que ser acionada para deter a irracionalidade. Há três semanas, a página no Facebook “Judeus Unidos Contra Bolsonaro” foi atacada com mensagens antissemitas. Para o presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib) Fernando Lottenberg, a rede social criou espaço para esse tipo de covardia. “Começa conosco [judeus], mas depois sempre se espalha contra outros grupos”, alerta.

Um problema recorrente para quem procura a Justiça é a falta de capacidade das autoridades em reconhecer um crime de intolerância religiosa quando estão diante dele. Há lei, mas falta jurisprudência, já que nenhum recurso do tipo foi julgado pelo STJ ou STF, o que torna difícil a aplicação de penas para esse crime, que é inafiançável e não prescreve.

Felizmente, um sinal de que a luta civilizatória não está perdida veio de Porto Alegre. Após 13 anos, a Justiça condenou um trio de neonazistas a 13 anos de prisão. Na madrugada de 8 de maio de 2005, aniversário do final da Segunda Guerra, Laureano Toscano, Tiago da Silva e Fabio Storm espancaram e esfaquearam três jovens que usavam quipás, símbolos da fé judaica. No julgamento, encerrado em 19 de setembro, foi reiterado o racismo e o preconceito. Intolerantes não podem ser admitidos em uma democracia
Crédito: Istockphoto

FONTE: ISTOÉ em 11/10/2018


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