Vítimas de violência e preconceito, terreiros são expulsos do DF

(foto: Editoria de Arte/Correio)

Levantamento inédito cataloga todos os terreiros no DF. São 230 ao todo, a maioria em regiões distantes do Plano Piloto. Estudo aponta tendência de esses espaços se mudarem para outras unidades da Federação


Por Flávia Maia


Mapeamento inédito visa tirar a invisibilidade dos terreiros do Distrito Federal. Pela primeira vez, um levantamento conseguiu catalogar todos os territórios de práticas de religiosidade de matriz africana na capital do Brasil. São 230 sítios espalhados por terras brasilienses. A maioria deles está em regiões afastadas do Plano Piloto, como Ceilândia, que tem 43 registros, e Planaltina, com 25. Após a experiência de Brasília, o estudo, realizado pelo projeto Geoafro — uma parceria da Universidade de Brasília (UnB) com a Fundação Cultural Palmares —, deverá ser replicado no Amapá.

Embora, em um primeiro momento, o objetivo fosse registrar os terreiros existentes, a pesquisa trouxe importantes informações, que serão aprofundadas em estudos subsequentes. Um dado preocupante é a migração dos sítios religiosos para endereços cada vez mais distantes do centro de Brasília. Se, inicialmente, os terreiros saíram do Plano Piloto para as regiões administrativas mais distantes, agora, eles estão indo para outras unidades da Federação, principalmente as cidades goianas do Entorno do DF. Como ponto de partida, os pesquisadores tinham endereços de 350 terreiros. Desses, apenas 230 estão ativos em território brasiliense.

Pelo menos 16 terreiros migraram para cidades vizinhas, como Luziânia, Santo Antônio do Descoberto, Águas Lindas, Planaltina de Goiás e Cidade Ocidental, e para outros estados, como Bahia, Ceará e São Paulo. Na análise do professor Rafael Sanzio, coordenador da iniciativa, a especulação imobiliária de Brasília, conjugada aos abusos gerados por intolerância religiosa, levaram os terreiros a se mudarem ou simplesmente fecharem as portas. “O preço da terra, a ação de grileiros e a intolerância da vizinhança geraram um fluxo de saída dos terreiros do Distrito Federal. Tem algo errado que precisa ser corrigido.”

Proibidos em diferentes momentos da história brasileira e vítimas de preconceito, os terreiros tendiam a se instalar em regiões afastadas dos centros urbanos. A maioria ficava em área rural, pois as atividades religiosas precisam de elementos da natureza, como a água. Entretanto, o perfil mudou. Atualmente, 87,8% dos sítios estão nas cidades. A maioria deles é de umbanda, de matriz afro-brasileira (57,8%). Em seguida, predomina o candomblé, de matriz africana (33,5%). Apenas 8,9% são de umbanda e candomblé conjuntamente.


Urbanização

As cidades foram crescendo e cercando os terreiros até então distantes dos centros urbanos. Com isso, esses territórios passaram a ter vizinhos, por vezes, hostis às práticas religiosas de matriz africana, e tiveram que lidar com a ação de grileiros. O terreiro do Pai Jorge de Oxossi está instalado em Ceilândia desde 1977 e é um dos mais tradicionais do Distrito Federal. Ele conta que comprou o terreno da antiga Fundação Zoobotânica. Escolheu o local por causa da tranquilidade e das nascentes. À época, era uma Ceilândia rural, e o terreiro tinha apenas três vizinhos chacareiros. Hoje, ele é cercado pelo Pôr do Sol, uma das comunidades que mais crescem no país.

A partir dos 1990, a ocupação da vizinhança se intensificou. As chácaras começaram a ser loteadas e os grileiros, a agir. Pai Jorge conta que, naquela década, perdeu 20 alqueires, invadidos em um período que ele viajou para os Estados Unidos. Atualmente, o terreiro tem área de 32 alqueires. “Tinha mais água, mais nascentes, mais árvores. Mataram os baobás que trouxemos da África para construírem casas. Fomos ficando cada vez mais acuados”, lamenta. “Não vou brigar com esses vizinhos, ir para a Justiça, porque esse tipo de ação só seria resolvida na geração dos meus tataranetos. Fora que poderia colocar a vida dos nossos em risco. É o preço do progresso”, complementa.


Com o aumento da vizinhança, veio a violência. Pai Jorge optou por tirar a placa da fachada que identificava o terreiro, porque ela era alvo constante de tiros. “O povo perdeu a mão de Deus, o amor e o respeito à religiosidade do outro. As pessoas não toleram o que não conhecem e o saber não ocupa espaço na mente”, diz.

Ele espera que o mapeamento seja o início de políticas públicas para diminuir a intolerância. “Nós temos um trabalho importante com a comunidade e podemos fazer mais: abrir as nossas portas para um grupo de EJA (educação de jovens e adultos), para cursos de profissionalização, para campanhas de vacinação.”


Direito ao território


Adna Santos de Araújo, conhecida como Mãe Baiana, é ativista contumaz das religiões de matriz africana no DF. O seu terreiro, Ilê Axé Oya Bagãn, foi vítima de vários tipos de violência: desde queimadas criminosas por intolerância religiosa à violência praticada pelo Estado. Em 2009, a Agência de Fiscalização (Agefis) a despejou do local em que estava sob alegação de que a ocupação era irregular.

“Tivemos que ir à Terracap cobrar os nossos direitos. Escutamos do presidente da época que nem sabia que 'esse povo existia em Brasília'”, recorda. Ela diz que um grave problema dos terreiros é a falta de qualquer tipo de documentação da terra. De acordo com a ativista, a emissão desse tipo de certificação costuma demorar muito mais do que nos casos de templos evangélicos ou católicos. “Espero que o mapeamento traga visibilidade aos terreiros. Queremos os mesmos direitos e proteções conferidos a todas as religiões”.

Mãe Vera Lúcia Chiodi é responsável por um terreiro de umbanda na Asa Norte. Em 2009, o Casa Luz de Yorimá também foi alvo de ação da Agefis. Na memória de Mãe Vera ficou os tratores colocando a construção abaixo e a corrida para conseguir tirar todos os elementos de fé da casa em 24 horas. “Foi uma violência de Estado. À época, tinham outras casas comerciais também irregulares e só derrubaram a gente”, diz.

Uma recomendação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios pediu ao órgão que suspendesse as ações no terreiro. Embora, desde então, nenhuma operação de derrubada tenha sido feita, há cinco anos eles aguardam a resposta de um processo de regularização junto à Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth). “Os terreiros foram sendo jogados para a periferia por esse tipo de pressão e violência. Nem eu, nem os médiuns vamos desistir.”


Políticas públicas


De acordo com Erivaldo Oliveira da Silva, presidente da Fundação Cultural Palmares, Brasília foi a pioneira de um projeto de mapeamento que deve se estender por todo o Brasil. Segundo ele, apenas Salvador (BA) tem um catálogo formal de seus terreiros, e está desatualizado, uma vez que foi feito em 1992. “A gente não quer mais que as práticas de fé negras fiquem nos guetos”, afirma.

Segundo o presidente, o documento poderá ser usado para guiar políticas públicas, tanto em campanhas contra a intolerância, como o aproveitamento dos terreiros como pontos de cultura, vacinação e educação. “As pessoas têm que dizer 'sou do candomblé', 'sou da umbanda' sem medo. Precisamos encarar com naturalidade.”

Serviço
Solenidade de entrega do resultado do Mapeamento dos Terreiros do Distrito Federal
Amanhã, no Museu da República, às 10h30

FONTE: Correio Braziliense 02/05/2018




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